quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Por mais um minuto apenas [1]


Sobre Todas as Coisas [Chico Buarque] Maria Rita

Um coração cinza de enganos            
Se em teu leito nas calçadas              
Mesquinhei-te o olhar e o pão          
Engano teu, quem se enganava era eu   [...]

Minha dor senil se acomoda                
A dor não dói, são meus tesouros      
Vão-se meus domínios de agonia      
O lume da vanglória em desespero  
Quis mais... Muito além do proibido   [...]

Nem excesso e nem por fuga                
Se tudo pude ao gosto                              
No desejo de todos os sabores            
Saciei-me mais que a fome
Desdenhei da fome alheia    [...]

Os fantasmas fazem a dança
Labaredas de ódio e de rancor
A desonra há em muitos corpos
A escravidão em meus instintos
Alimento a face em guerra oculta     [...]

Encontres o amor e meu pecado
Sofro ainda mais se estás feliz
Não quero apenas seus tesouros
Se teu prazer me torna aflito
A sua felicidade causa-me dor      [...]

Tudo tive sempre ao gosto
Para um mundo sem vontades
Nem fiz pressa das escolhas
Admirei-te, averso ao teu esforço,
Só no ensejo em ser recompensado   [...]

Tantos prazeres que dei tato
Em quantos corpos meu deleite
Beijo alguém somente aos falsos
Fiz-me da vantagem o meu desejo
Não raro em corrupção tamanha      [...]

Ante o abismo que me espera
Perdí-me à luz do anjo caído
Nem o nirvana e nem o éden
Foram-se todos em promessas  
Restou-me o agora tão sozinho    [...]

Só neste segundo dei-me conta
Há um demônio em cada espelho
Seduziu-me, roubou-me as horas
Pudera quebrá-lo e não consigo  
Quisera voltar tantos momentos    [...]

Se a justiça sempre tarda
Nem a humana e nem a divina
Só reconhecí nos dois extremos
Pelo prazer que ora sofro
Contido e sábio é o equilíbrio    [...]

Nem a imagem ou semelhança
Foram as ilusões e as promessas
Nem o eterno ou tão perfeito
Teria a imagem do Divino
Se depois do verme fui criado   [...]

Por este lúcido momento
Valeu-me caro a vida inteira
Dos instintos o abandono
Olhai-me e minh'alma indaga
Se te reconheces no minuto findo   [60]